23 de abril de 2020

O Clube de Futebol como Estado Soberano - Artigo do New York Times


















Que o futebol português é marcado por polémicas não é novidade para ninguém que o acompanhe de forma regular, sendo que algumas delas resultam em longas e densas tramas legais, com resultados mistos.

Nós, portugueses, aparentamos levar como normais este tipo de situações, seja por uma questão de hábito ou como uma forma de fugir à fraca competitividade do nosso campeonato, entre outras razões, e não deixa de ser notável como, numa altura em que o futebol se encontra essencialmente proibido por razões de saúde pública, as polémicas persistem.

Pensarão, por esta altura, que este artigo vai abordar o Sport Lisboa e Benfica. Correto, mas isto não se trata de apontar mil e um dedos ao clube encarnado, pois as águias estão longe de estar sozinhas no que toca às polémicas do futebol nacional - ainda ninguém se terá esquecido do caso Apito Dourado, do ataque a Alcochete, entre várias outras peripécias, assim como a mais recente polémica que envolve o Desportivo das Aves - ainda que os casos mais badalados dos últimos tempos tenham envolvido o clube liderado por Luís Filipe Vieira.

Posto isto, elaboramos apenas uma tradução artigo publicado originalmente no New York Times e que mostra um pouco a forma como este tipo de situações é vista além-fronteiras, ainda que não seja a primeira vez que os media estrangeiros se mostram críticos destas danças do nosso futebol - o supracitado caso Apito Dourado serve de exemplo.

Antes de passarmos ao artigo propriamente dito, queremos ressalvar, mais uma vez, que esta publicação não pretende apontar baterias ao Sport Lisboa e Benfica, tratando-se apenas da reprodução, tradução e divulgação do artigo elaborado pelo jornalista Tariq Panja.

A tradução pretende manter a mensagem fiel à original, tendo sido adicionados alguns detalhes pertinentes (e verificáveis noutras publicações lusas). As declarações de Ana Gomes foram, também, retiradas de um artigo do Diário de Notícias, tal e qual como se encontravam reproduzidas, em vez de traduzidas do artigo em inglês, para uma maior fidelidade. O conteúdo é, no entanto, o mesmo que encontrarão no artigo do New York Times.

O clube de futebol como estado soberano

 

(Artigo original da autoria de Tariq Panja, publicado no New York Times a 22 de Abril de 2020 - Link disponível no final.)

Juízes, procuradores e até mesmo o Primeiro Ministro incluem-se na grande multidão que são os adeptos do Benfica em Portugal. O que acontece, no entanto, quando é permitido que estes adeptos assumam as rédeas de casos que afetam os interesses do clube?

A afeição do juiz pelo Benfica, o clube de maior dimensão a nível nacional, dificilmente o mostra como parte desinteressada.

É comum para o Benfica gabar-se de contar com mais de metade da população do país entre os seus apoiantes, sendo que juízes, procuradores, altas figuras dos quadros da polícia ou até mesmo o Primeiro-Ministro são convidados com presença regular na tribuna VIP. Aliás, um juiz em particular tem sido um sócio tão fiel que, no ano passado, recebeu mesmo a águia de ouro, prémio simbólico da sua longevidade (50 anos) de afiliação com os encarnados.

Assim, quando foi revelado que um juiz – ainda que não aquele condecorado pelos Benfica – se juntou à legião de críticos de Rui Pinto, que havia causado algum embaraço ao publicar aquilo que muitos consideram ser segredos obscuros do clube, poucos saíram em sua defesa.

No entanto, para os advogados de Rui Pinto, ele que deverá ir a julgamento durante o verão, a associação do juiz com o Benfica representava um problema grave: Esse mesmo juiz tinha sido encarregado de supervisionar o caso do seu cliente.

“Não nos sentimos confortáveis,” disse Francisco Teixeira da Mota, numa entrevista telefónica. “Claro que teríamos preferência por alguém que não estivesse associado ao Benfica.”

O alcance e dimensão do Benfica poderão, no entanto, dificultar essa tarefa. O conjunto lisboeta é o maior dos chamados três grandes, um colosso do desporto e multimédia cuja influência pode ser sentida em quase todos os aspetos do quotidiano do país. É uma equipa cujos adeptos ocupam lugares de poder e influência em diversos setores, desde os meios de comunicação ao governo, passando também pela banca.
De acordo com os críticos do Benfica, é esse poder que garante ao clube e aos seus líderes uma margem de manobra que se estende para além das quatro linhas, sendo que também ajuda a explicar o porquê de ter recebido a alcunha de “O Polvo”.

Ana Gomes, diplomata de carreira e que, em tempos mais recentes, virou as suas atenções para o movimento anti-corrupção, afirmou acreditar que o tamanho desmesurado da influência do Benfica concedeu ao clube um estado privilegiado na sociedade Portuguesa, nomeadamente no que envolve assuntos legais. A expressão “captura do Estado”, que Ana Gomes utilizou para descrever o estatuto do Benfica, refere-se à noção de que entidades privadas, tais como grandes corporações ou até mesmo clubes com um elevado grau de popularidade, podem tornar-se poderosos ao ponto de, caso assim o desejem, influenciar o próprio Estado.

“A captura do Estado é feita através da captura de pessoas que estão numa posição institucional no mesmo e um dos pilares principais é o sistema de justiça” afirma a ex-eurodeputada. “Se há juízes capturados ou que não se importam de parecê-lo, temos um problema. ”

Instado a comentar, o Sport Lisboa e Benfica defendeu as suas ações através da publicação de um artigo online.

Um porta-voz do clube disse, via e-mail, que funcionários do Benfica jamais levaram a cabo ou sugeriram atos que “não fossem perfeitamente legais”.

Sugeriu também que aqueles que se insurgem contra o clube o fazem por inveja, motivados pelos recentes anos de sucesso, dizendo também que não é verdade que o Benfica tenha qualquer influência indevida na sociedade portuguesa e que sugestões em contrário não passam de teorias da conspiração, essas que são “o pão nosso de cada dia da internet, redes sociais e, infelizmente, até de jornais de renome.”

Por agora, quem aparenta estar a braços com o maior dos problemas é mesmo Rui Pinto. Ao agir contra o Benfica e, aparentemente, expondo os seus segredos, o acusado parece ter feito um temível inimigo.

Preso pelas autoridades no ano passado, na Hungria, e extraditado para Portugal, Rui Pinto poderá enfrentar uma pena que vai até aos 25 anos de prisão pelos alegados crimes de hacking, esses que terão posto a descoberto não só os documentos secretos do Benfica, mas também outros relacionados com jogadores, agentes e até mesmo o escritório do Procurador-geral da República. Essas acusações são, no entanto, relativas a detalhes revelados por Rui Pinto na conhecida plataforma Football Leaks e não no website no qual, mais tarde, revelou a maioria das suas informações sobre o Benfica.

Essas revelações receberam elogios por trazerem à luz a face oculta do desporto mais popular do mundo, mas parecem agora ser apenas uma fonte de ansiedade para Rui Pinto. Isto porque o seu futuro está nas mãos de Paulo Registo, um juiz que pode já ter demonstrado acreditar que o arguido é culpado.

Após ter sido nomeado para presidir ao julgamento de Rui Pinto, Paulo Registo tentou apagar publicações nas redes sociais que o associassem ao Benfica, mas não o conseguiu fazer antes de estas atraírem as atenções de várias pessoas, incluindo jornalistas. Aliás, Registo terá mesmo colocado um “gosto” numa publicação que descrevia Rui Pinto como um “pirata”.

“Juiz que vai julgar Rui Pinto não esconde amor pelo Benfica” – esta foi parte do título de uma notícia do jornal desportivo Record, que publicou também algumas das mensagens em questão.

Essa associação apenas serviu para incendiar ainda mais os ânimos entre os críticos que há muito protestam contra aquilo que consideram ser uma relação próxima entre as principais instituições do Estado e o Benfica. Não era, no entanto, a primeira vez que Paulo Registo supervisionava um caso ligado ao seu clube do coração.

Antes de ser nomeado para presidir ao julgamento de Rui Pinto, Paulo Registo fez parte de um painel de juízes que supervisionaram um caso que envolvia o ex-diretor legal do Benfica, Paulo Gonçalves, acusado por oferecer favores e benefícios a dois funcionários da justiça que são acusados de obterem acesso ilegal a informações confidenciais relativos a investigações sobre o Benfica, informações essas que seriam passadas, posteriormente, a funcionários do clube.

Contudo, apesar de ser o principal responsável pelo departamento legal do clube e de as suas ações terem beneficiado o Benfica, o tribunal permitiu a Paulo Gonçalves obscurecer as suas ligações ao clube, afirmando que tinha agido por conta própria. Mais tarde, um dos juízes de recurso afirmou que deveria ter sido o clube a ser acusado.

Adicione-se a isto o facto de Registo não ser o único juiz cuja ligação com o Benfica viria a ser revelada mais tarde a lidar com um caso no qual o clube era parte interessada.

Em março do ano passado, o juiz Eduardo Pires, premiado pelo Benfica devido à sua longevidade como sócio, pediu escusa – muito tardiamente – do processo no qual o FC Porto procurava reverter uma ordem do tribunal para que ressarcisse o Benfica em dois milhões de euros como indemnização por ter divulgado, no seu canal de televisão, informação confidencial sobre o clube lisboeta. O presidente do Tribunal da Relação do Porto recusou o pedido de Eduardo Pires, declarando que a sua paixão pelo Benfica não poderia influenciar a sua imparcialidade como juiz.

Não muito tempo depois de ter sido nomeado para o caso em questão, Pires, que também era dono de algumas ações do Benfica, recebeu um convite para visitar o complexo de treinos do Benfica, no Seixal, convite esse que Pires terá recusado e que mereceu clarificação por parte do clube encarnado.

O recurso da decisão, interposto pelo FC Porto, continua, mas a frequência de desfechos favoráveis ao Benfica e os conteúdos das informações reveladas por Rui Pinto – que incluíam uma base de dados com os endereços de alguns dos mais reconhecidos e importantes juízes do país e notas relativas aos jogos para os quais receberam convites – voltaram a levantar questões acerca dimensão da influência do clube encarnado.

“É preciso entender a história de Portugal para entender a importância do futebol na nossa cultura, política, até mesmo no nosso dia-a-dia,” diz Mário Figueiredo, ex-presidente da Liga. De acordo com as suas palavras, vários presidentes dos três grandes já tiveram problemas com a justiça, mas nenhum chegou a ser declarado culpado enquanto ocupava o cargo.
“Ser o presidente é uma forma de proteção”, diz Figueiredo. Por exemplo, foi há mais de uma década que Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do FC Porto, foi ilibado do envolvimento num escândalo de corrupção após as escutas telefónicas que pareciam ligá-lo a um esquema de suborno de árbitros terem sido consideradas inadmissíveis por um juiz.

Se Paulo Registo continuará encarregado do julgamento de Rui Pinto é, no entanto, algo que ainda não está bem claro.

Na segunda-feira, após a publicação de notícias que revelavam as suas ligações ao Benfica, Registo endereçou um pedido de escusa do processo, pedido esse que ainda não obteve resposta.

Entretanto, o Sport Lisboa e Benfica afirmou que procurará levar à justiça não só Rui Pinto, mas “todos os criminosos que invadiram, assaltaram e insultaram esta instituição centenária. ”

Os encarnados sugeriram também que as ações de Rui Pinto teriam sido financiadas por entidades estrangeiras e grupos internacionais de hackers, com o apoio de figuras políticas, organizações internacionais e meios de comunicação por toda a Europa e Estados Unidos.



Para mais detalhes, poderão consultar a versão original do artigo (em inglês) aqui, assim como uma publicação do próprio Sport Lisboa e Benfica, na qual o clube responde às perguntas e acusações de que é alvo.


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